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Por que não desisti de amamentar minha filha com Síndrome de Down
Quando descobri que estava grávida da minha segunda filha, vivi um misto de euforia e serenidade. Já havia amamentado meu filho mais velho até os três anos e, como médica e consultora em amamentação, tinha confiança de que seria uma jornada ainda mais tranquila. Eu achava que estava preparada para tudo. Mas não estava.
Durante a gestação, fiz um pré-natal rigoroso, com todos os exames em dia. Nada indicava que algo fugiria do esperado. No entanto, após um descolamento de placenta inesperado, precisei passar por uma cirurgia de emergência.
Aurora nasceu prematura e foi levada à UTI neonatal. Só pude vê-la oito horas depois do nascimento. Foi naquele momento que recebi o diagnóstico: minha filha tinha Síndrome de Down — algo que não havia sido detectado nos exames anteriores.
Na UTI, ela estava com suporte respiratório e sendo alimentada por sonda. Ninguém me perguntou se eu queria amamentá-la. Pelo contrário: ouvi que bebês com T21 “não conseguem sugar direito” e que “iriam precisar de fórmula de todo jeito”.
Mas eu não aceitei aquela sentença.
Eu sabia o valor do leite materno, especialmente para bebês como ela. E, mais importante, eu tinha o desejo de amamentar. Esse desejo precisava ser respeitado.
Amamentar é possível e necessário
No Brasil, estima-se que uma criança com Síndrome de Down nasça a cada 700 partos, o que representa cerca de 270 mil pessoas com a condição, segundo a Biblioteca Virtual em Saúde.
Globalmente, a incidência é de 1 a cada 1.000 nascidos vivos, de acordo com o Ministério da Saúde.
A trissomia do cromossomo 21 pode trazer consigo uma série de características físicas e desafios de saúde, incluindo hipotonia (redução do tônus muscular), cardiopatias congênitas e dificuldade na coordenação de sucção e deglutição.
Essas características tornam a amamentação mais desafiadora, mas não impossível. Pelo contrário: é justamente por essas vulnerabilidades que o aleitamento materno se torna ainda mais importante.
O leite humano não é apenas o alimento mais completo e adaptado para um bebê: ele também é um verdadeiro medicamento natural, capaz de fortalecer a imunidade, prevenir infecções e favorecer o desenvolvimento neuromotor, emocional e cognitivo.
Um ato de resistência
Encontrei apoio em uma fonoaudióloga que acreditou comigo na possibilidade da amamentação.
Aluguei bomba para extração de leite, fiz massagens para estimular a produção e a musculatura da Aurora, chorei muito no puerpério e enfrentei um sistema hospitalar pouco acolhedor. Mas persistimos.
Nos primeiros dias, minha filha não conseguia mamar mais de dois minutos sem se cansar.
Com fonoterapia, paciência e muito colo, esse tempo foi aumentando. Aos poucos, vencemos os obstáculos.
Aurora foi amamentada exclusivamente com leite materno até os 7 meses e, hoje, com 1 ano e 10 meses, segue mamando de forma complementar.
Foi um processo diferente do que sonhei, mas transformador. Um verdadeiro ato de resistência.
Os benefícios são ainda maiores
Bebês com Síndrome de Down têm maior risco de infecções respiratórias, constipação, refluxo, alergias e dificuldades de ganho de peso.
O leite materno, por ser de fácil digestão e oferecer proteção imunológica, pode reduzir significativamente esses riscos. Além disso:
- Fortalece a musculatura oro-facial, essencial para o desenvolvimento da fala;
- Estimula o vínculo afetivo entre mãe e bebê, especialmente quando o início da relação pode ter sido impactado por internações ou diagnósticos inesperados;
- Contribui para o desenvolvimento emocional e sensorial da criança, por meio do contato pele a pele e da interação constante com a mãe;
- Promove a autoestima materna, ao permitir que a mulher assuma um papel ativo no cuidado de seu filho.
Mesmo quando o bebê não consegue mamar diretamente no seio — seja por estar na UTI ou por dificuldades de sucção —, a ordenha e a oferta do leite por copinho ou sonda garantem que ele receba o alimento e seus benefícios.
E sim, mesmo pequenas quantidades fazem diferença.
O que precisa mudar
Infelizmente, muitas mães de bebês com T21 são desencorajadas a amamentar.
Em vários casos, sequer têm a oportunidade de tentar. Isso não acontece por falta de vontade, mas por ausência de apoio, informação e acolhimento.
Estudos mostram que, com suporte adequado, mais da metade dos bebês com Síndrome de Down conseguem mamar normalmente. Para isso, as equipes de saúde precisam estar preparadas.
É fundamental termos mais profissionais capacitados para acompanhar essas famílias com empatia e conhecimento.
Precisamos entender que cada bebê tem sua própria história e que, muitas vezes, a amamentação é possível, ainda que com adaptações.
Para outras mães que vivem o mesmo
Se você está lendo este texto e se reconhece nele, quero te dizer algo: é possível amamentar um bebê com Síndrome de Down.
Os desafios podem ser maiores, mas, se esse for o seu desejo, não desista. Sua persistência faz diferença. Seu bebê pode surpreender.
Talvez a amamentação não aconteça como você imaginou. Talvez o aleitamento exclusivo não seja viável… mas lembre-se: cada gota de leite materno importa e contribui para a saúde do seu bebê.
Amamentar um bebê com Síndrome de Down não é apenas possível: é um gesto de cuidado profundo, com impacto para toda a vida. É um caminho desafiador, sim, mas também intensamente recompensador.
Na minha vivência como médica e mãe, aprendi que cada gota de leite carregava não apenas nutrientes, mas também resistência, vínculo e afeto.
Esse início de vida, mesmo com suas dores, foi o melhor presente que eu poderia dar à minha filha — e a mim mesma.
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Dra. Amanda de Paula é médica de Família e Comunidade pela AMB – Associação Médica Brasileira (RQE 15.314 | CRM ES 15.515). Formada em Medicina pela Universidade Vila Velha (UVV), atua no cuidado integral de pessoas com Síndrome de Down. Possui formação em consultoria em amamentação, curso de cuidados ao longo da vida na Síndrome de Down pelo Hospital Albert Einstein (SP) e é pós-graduanda em Síndrome de Down pelo CEPEC/SP.