Tristeza de fim de ano: não existe nada de errado com você

Se você sente que tem alguma coisa errada com você e não sabe explicar exatamente o que, este texto é para você.

Aquela sensação de desajuste, de desalinhamento, como se você estivesse vivendo a sua vida, mas algo estivesse fora do lugar.

Quero conversar com você como médica neurologista que há mais de 10 anos atende pacientes reais no consultório, todos os dias — e não por meio de conceitos abstratos ou de uma sequência de frases bonitas e prontas.

Já adianto: na maioria das vezes, não tem nada de errado com você. É apenas o seu cérebro tentando buscar sentido em um contexto que exige apenas performance.

O cérebro humano é uma máquina de previsão, comparação e detecção de erro. Ele funciona muito bem para identificar ameaças e perceber o que foge ao padrão, mas não foi feito para gerar satisfação constante.

Quando você sente que há algo errado, geralmente estão mais ativos o córtex pré-frontal medial — região responsável pela autoavaliação — e o sistema límbico, em especial a amígdala, que reage à incerteza.

Tristeza de fim de ano e o cérebro em modo de avaliação

Em períodos de transição, especialmente após um ano difícil, o cérebro entra em um modo de checagem existencial: onde eu estou, onde achei que estaria, por que as coisas parecem não estar fazendo sentido?

Isso não é doença. É o funcionamento normal do cérebro diante da avaliação e da incerteza.

Há algo que vejo no consultório todos os dias e que pouco se discute fora dele: a patologização da experiência humana normal.

Hoje, qualquer sensação de dúvida, vazio ou desalinhamento rapidamente vira:

  • “Será que tem alguma coisa de errado comigo?”
  • “Será que estou deprimido?”
  • “Será que preciso tomar alguma medicação para melhorar isso que estou sentindo?”

A neurociência e a psicologia comportamental concordam em um ponto fundamental: sofrer não é sinônimo de adoecer.

O cérebro reage a finais de ciclos, sejam simbólicos ou reais.

O fim de ano, por exemplo, representa um encerramento simbólico — e isso gera desconforto.

A tristeza de fim de ano, portanto, não é um defeito, mas uma resposta humana previsível.

Transformar esse desconforto em doença ou defeito pessoal é um erro clínico.

Nesse período do ano, é essencial cautela com diagnósticos equivocados, porque estamos vivendo uma experiência humana de desconforto existencial — e isso não se traduz, necessariamente, em um diagnóstico.

Quando a tristeza de fim de ano vira adoecimento de verdade

Do ponto de vista neurológico, há um ponto central. O cérebro não diferencia bem ameaça real, emocional ou simbólica.

Se você vive uma rotina de exposição constante a ameaças simbólicas, emocionais ou físicas reais, é possível que o cérebro adoeça de fato.

Nesse caso, falamos sim de um diagnóstico clínico, que pode exigir tratamento, inclusive medicamentoso.

Quando a vida é marcada por vigilância constante (tentando dar conta de tudo, atender expectativas externas e não se permitir errar ou aprender) o cérebro entra em estado de hipervigilância.

Nesse estado:

  • a amígdala fica hiperativa;
  • o córtex pré-frontal passa a funcionar abaixo do ideal.

Essa é a neurobiologia do estresse prolongado.

A literatura científica descreve três fatores principais associados a esse processo:

  • Comparação constante: as redes sociais expõem o cérebro a recortes irreais de felicidade, sucesso e rotina, levando à sensação contínua de fracasso.
  • Desalinhamento entre valores e rotina: pessoas produtivas e ocupadas, mas que passam os dias fazendo o que não consideram realmente importante.
  • Exaustão cognitiva crônica: privação de sono e excesso de estímulos que colocam o cérebro em modo sobrevivência.

Um cérebro em sobrevivência perde nuance emocional. Tudo vira peso, obrigação, dever. O brilho se apaga.

Tristeza de fim de ano não é fraqueza, é excesso de cobrança

Aqui existe um paradoxo importante. Quem mais sente esse peso de inadequação costuma ser justamente quem é mais preocupado, responsável e competente.

São pessoas com córtex pré-frontal mais ativo, voltado à autoavaliação e à leitura de contexto.

Isso é uma vantagem competitiva, mas também um risco emocional — porque são pessoas que avaliam, antecipam e analisam demais.

Sentir que algo está errado nem sempre é sinal de falha. Muitas vezes, é sinal de excesso de avaliação sem espaço para elaboração.

O erro mais comum é tentar se consertar sozinho.

O cérebro não se regula sob ataque ou sob a ideia constante de inadequação; ele precisa de clareza e segurança para ajustar a rota.

A pergunta não deveria ser: “o que tem de errado comigo?”, mas sim: “em que contexto estou tentando funcionar como se isso fosse normal?”

Nenhum cérebro foi feito para viver sob estímulo constante, cobrança permanente, ausência de pausa e comparação contínua com realidades irreais.

Sentir-se desalinhado nesse cenário (inclusive sentir tristeza de fim de ano) não é sinal de doença. É sinal de sanidade.

Orientações práticas para atravessar esse período

Algumas orientações objetivas ajudam mais do que qualquer tentativa de autocorreção forçada:

  • Reduza estímulos antes de tentar organizar emoções. Emoções se reorganizam melhor em um cérebro descansado.
  • Nomeie o desconforto com precisão. Não é “estou errado” ou “minha vida é toda errada”, mas “estou cansado”, “estou sobrecarregado”, “estou precisando de sono ou de cuidado afetivo”.
  • Pare de usar redes sociais como régua existencial. Aquilo não é parâmetro de normalidade humana.

Antes de buscar um diagnóstico, observe o ambiente, o contexto e a rotina.

Considere o sofrimento como uma experiência profundamente humana.

Um cérebro saudável é capaz de viver todas as emoções nos contextos adequados.

Quando os contextos não são saudáveis, o desconforto é apenas uma resposta coerente do cérebro a um estilo de vida incompatível com a saúde.

Permita-se considerar que pode haver algo errado não com você, mas com a forma como você está se tratando.

Não vamos transformar sofrimento existencial em doença, nem cansaço em identidade.

Leia também: Inteligência se constrói com movimento

Dra. Marília Graner

Sou neurologista, especialista em neurociência comportamental e cognitiva, com foco em como nosso cérebro molda pensamentos, emoções e comportamentos.

Meu objetivo é traduzir a ciência do cérebro de forma prática e acessível, ajudando pessoas a desenvolverem mais autoconfiança, equilíbrio emocional e clareza mental. Além disso, compartilho conhecimento sobre saúde mental, hábitos e produtividade, sempre integrando a ciência à vida cotidiana.

Instagram: @dra.mariliaganer

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Dra. Marília Graner
Dra. Marília Graner

Sou neurologista, especialista em neurociência comportamental e cognitiva, com foco em como nosso cérebro molda pensamentos, emoções e comportamentos. Meu objetivo é traduzir a ciência do cérebro de forma prática e acessível, ajudando pessoas a desenvolverem mais autoconfiança, equilíbrio emocional e clareza mental. Além disso, compartilho conhecimento sobre saúde mental, hábitos e produtividade, sempre integrando a ciência à vida cotidiana.

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